Apresentação
Deixando de lado as muitas discussões em teologia acerca das definições e âmbitos de Espiritualidade e Carisma, e salvaguardando ambos como dom do Espírito Santo, se pode dizer que a Espiritualidade se identifica com valores produzidos pelo Espírito nas mais amplas direções da vida cristã e religiosa; enquanto o Carisma é uma forma particular de se viver, uma forma concreta de leitura e realização do projeto evangélico, e da Espiritualidade. Tendo presente esta distinção, se pode dizer que o Carisma de uma Ordem religiosa é onde se condensa, se encarna ou se configura os valores da Espiritualidade. Por sua vez, o Carisma ‘condiciona’ a própria Espiritualidade. Para explicá-lo com um exemplo: os votos religiosos (pobreza, castidade, obediência) fazem parte da Espiritualidade da vida religiosa na Igreja e todas as Ordens, Congregações e Institutos de vida consagrada são chamados a vivê-los.Mas cada um dos votos é vivido conforme o carisma da própria Ordem, Congregação ou Instituto. Por exemplo, a pobreza agostiniana e a franciscana não são vividas ao mesmo modo. Isto se dá também em relação à obediência, à castidade, à comunidade. Esses valores e outros são vividos pelos agostinianos à luz da experiência de santo Agostinho.
A experiência humana e espiritual de Santo Agostinho pode ser sintetizada da seguinte forma: busca intensa da Verdade-Deus (interioridade); e, tendo-O encontrado, a Ele dedicar-se inteiramente em comunhão com os irmãos (comunidade) e para os irmãos (serviço à Igreja).
Interioridade: A busca de Deus
A busca de Deus é o motivo-guia, o fio condutor da vida de Agostinho. E busca de Deus, para Agostinho, identifica-se com busca da Verdade. Mas não diz respeito somente a quem busca verdades sobre as coisas, ou a quem ainda não tem fé, nem a quem ainda não encontrou em Cristo a verdade de sua existência. Também não se trata unicamente de atividade do pensamento. Trata-se de uma atitude de fé; é uma realidade existencial; envolve mente e coração; o ser em sua totalidade em empenho constante de busca.
A realidade de Deus é, de fato, tão insondável que jamais poderá ser conhecida em completude nesta vida: mais se busca Deus, mais se encontra Deus; mais se encontra Deus, mais se ama Deus; mais se ama Deus, mais cresce o desejo de buscá-lo. Porém, como buscar e onde encontrar Deus? A principal via indicada por Agostinho é a interioridade: ''Não saias fora de ti, volta-te a ti mesmo; a verdade habita no homem interior, e, ao dar-te conta de que tua natureza é mutável, transcende a ti mesmo'' (A verdadeira religião 72). A interioridade é, então, um movimento para dentro de si mesmo, não para exercitar o movimento dos próprios pensamentos, mas para ouvir-se, ver-se e, ao encontrar a própria mutabilidade, sair de si mesmo para acender à luz de sua razão, Aquele que a ilumina e lhe fala na consciência.
Somente quando se tiver encontrado a si mesmo, ensina Agostinho, quando se tiver reconquistado a própria humanidade perdida, livrando-a da escravidão de paixões transitórias, se poderá reencontrar também Deus e, daí, a felicidade. O exercício da interioridade agostiniana é, então, em seu processo de busca libertação da escravidão das coisas (do materialismo e do hedonismo) e recuperação de si mesmo para poder se encontrar com Deus e viver em conformidade com a verdade por Ele revelada.
Comunidade: Comunhão de vida
Àqueles que querem participar de sua experiência de busca de Deus, Agostinho propõe o exemplo da primitiva comunidade cristã de Jerusalém, descrito nos Atos dos Apóstolos (2;4): formavam um só coração e uma só alma, tudo era comum entre eles e a cada um dava-se conforme suas necessidades.No início da Regra que escreveu para seus monges, Agostinho põe a razão da reunião em comunidades nestes termos: ''Em primeiro lugar – já que com este fim vos haveis congregado em comunidade – vivei unânimes em casa e tende uma só alma e um só coração orientados para Deus'' (Regra 3). Dito de outro modo, aqueles que se propõem a viver em uma comunidade são movidos pelo desejo de orientar-se para Deus, o que faz com que todos vivam em unidade de alma e coração.
Vive-se, portanto, em comunidade não para constituir uma espécie de Sociedade Anônima; não para viver como uma alegre associação de amigos; não para que se possa unir as forças dos indivíduos e ser mais eficientes; não para fugir das responsabilidades da vida; mas, sim, para endereçar-se a Deus, a Verdade-Felicidade buscada e encontrada.Com efeito, não basta uma unanimidade qualquer para fazer uma comunidade religiosa agostiniana (pode-se ser unânimes em vários aspectos nada religiosos da vida). É preciso que esta esteja centrada em Deus e todos, juntos, a ele se dirijam em unidade. Unidade de desejos, de ideais e de projetos; respeito pelas exigências e pela dignidade da pessoa e a perfeita vida comum: são as três notas que caracterizam a comunidade agostiniana, que, na mente de Agostinho, quer ser sobre a terra um sinal da cidade celeste, imagem, ainda que pálida e imperfeita, da absoluta comunhão de amor existente entre as pessoas da Santíssima Trindade.
Ao se unirem em comunidade, os agostinianos querem deixar o egoísmo e ir ao encontro de Deus. Fazendo-se, por amor, irmãos uns dos outros, se honra Deus (cf. Regra 9) e se promove Seu Reino entre todos.A comunhão agostiniana de vida encontra, por isso, sua manifestação na comunhão de bens. Por isso nada é próprio, nada é do indivíduo; nada é propriedade privada; tudo é comum, tudo é da comunidade (cf. Regra 4), ou seja, antepõe-se o bem comum ao próprio (cf. Sermão 78,6), e este bem é Deus mesmo, a maior riqueza (cf. Sermão 355,2), desejado, buscado e partilhado por todos, em unanimidade.
Quando uma comunidade tem estas características, a obediência se torna colaboração em um projeto de comunhão e apoio recíproco, a pobreza torna-se partilha, a castidade torna-se meio para se dilatar o coração à acolhida e ao senso de fraternidade universal; o ‘peso’ da vida comum é superado pela amizade em Cristo que, não só corrobora na formação da personalidade, mas também faz crescer na verdadeira liberdade do indivíduo; a humildade (outro elemento fundamental da espiritualidade agostiniana), que está na base da vida comum, torna-se senso de responsabilidade.
Quem escolhe ser Agostiniano, propõe-se, então, a buscar e honrar a Deus colocando a própria vida (alma, coração) em comum, a serviço principalmente e, sobretudo, da própria comunidade; pois, a vida religiosa é dom dado pelo Espírito à Igreja para o bem de todos, e a comunidade é uma pequena Igreja, na qual se quer viver concordemente, na fraternidade e na amizade espiritual uns com os outros, honrando Deus uns nos outros (cf. Regra 9).
Serviço à Igreja
Agostinho, com toda propriedade, além do título de Doutor da Graça que a Igreja lhe conferiu, bem poderia ser chamado Doutor da Unidade. Ele, de fato, empenhou todas as energias pela unidade da Igreja e para salvar a integridade da fé.Para ir ao encontro das necessidades da Igreja de seu tempo, sacrificou o desejo de uma vida retirada e quis que seus companheiros fizessem o mesmo (cf. Carta 48,2).
A comunidade agostiniana serve à Igreja sobretudo como sinal de unidade, primeiro pela unidade de sua própria comunidade, mestra de interioridade, de busca e encontro com Deus, promotora de comunhão.O religioso agostiniano, então, bem como a própria comunidade agostiniana, é, segundo o modelo do próprio Agostinho, um filho exemplar da Igreja, e por isso, deve ‘sentir’ com a Igreja e estar pronto para socorrê-la em suas necessidades como a uma mãe (cf. Comentário aos Salmos 132).
De fato, o agostiniano não pode somente dedicar-se à contemplação e evitar o que é pastoralmente útil para o próximo; bem como não pode dedicar-se à atividade pastoral e evitar a contemplação.Assim, se a necessidade não se apresenta, permanece-se na quietude que a caridade da verdade requer(cf. A cidade de Deus 19,19). Se a necessidade se apresenta, não se abandona o amor pela verdade para não ser privado de sua doçura e ser oprimido pela atividade (cf. A cidade de Deus 19,19). Ao se falar, porém, de atividade, poder-se-ia, naturalmente, perguntar: que fazem, especificamente, os Agostinianos?
Entre as Ordens, Congregações e Institutos há aqueles que se dedicam à missão, outros à educação outros à caridade etc.Os Agostinianos não têm uma atividade específica e única. Não é uma atividade que os caracteriza, é um estilo de vida. Todo e qualquer apostolado é consonante com os Agostinianos, desde que realizado agostinianamente, isto é, desde que respeite os valores fundamentais da vida agostiniana apresentados precedentemente (interioridade, comunidade, segundo o estilo de Agostinho).
De fato, o apostolado dos agostinianos pelo mundo afora manifesta-se de várias e abrangentes formas: da catequese à pesquisa científica, de paróquias às universidades, da assistência em capelas às missões, da pregação às publicações, de creches à centros para a terceira idade e centros de recuperação de tóxico dependentes. A atividade que se assume é condicionada pelas necessidades da Igreja, como emergem de acordo com os tempos e lugares em que são assumidas.
O fundamento do Carisma
O que movia Agostinho a ter constantemente presente em sua espiritualidade os elementos acima indicados como o Carisma Agostiniano, e que sintetizam o que vivera o própria Agostinho? A resposta é dada pelo próprio santo no penúltimo parágrafo de sua Regra (48): caridade.
A caridade é, para o Doutor da Graça, o único e verdadeiro motivo para se levar adiante todo e qualquer empreendimento, o único e verdadeiro elemento a fazer boa uma intenção; o único e verdadeiro elemento a fazer válido um estilo de vida abraçado; o único e verdadeiro elemento a fazer legítima a observação de qualquer norma; o único e verdadeiro elemento a unir o homem e Deus e os homens entre si.
É a caridade presente naquele que é socorrido pela graça de Deus, que liberta o ser humano para que, de fato, seja tal. A vida do religioso agostiniano, como a do santo de Hipona, gravita em torno à caridade, pela qual se realiza tudo mais (cf. Os costumes da Igreja 1,48 e 73) e que dá sentido a tudo mais (cf. Comentário ao Evang. de João 32,8). A caridade é, para Agostinho, dom do qual derivam todos os dons do Espírito Santo (cf. Comentário ao Evang. de João, 87,1). Ainda que a vida comum e a comunhão de bens exijam esforços, individual e comunitário, são dons de Deus (cf. Comentário aos Salmos 132,2 e 10), que, mediante o Espírito Santo difunde a caridade em nossos corações (cf. Rm 5,5), como diria Agostinho nos passos do Apóstolo Paulo. A caridade é o peso que nos atrai. O agostiniano, livre por ação da graça, recebe desta o dom da caridade, dom recebido já antes para que pudesse ser cristão, para tornar-se o que é. Por isso, Agostinho, com propriedade, também poderia ser chamado Doutor da Caridade. De fato, a doutrina do amor, por dizê-lo de algum modo, é, juntamente com a doutrina da graça, o motor de toda a espiritualidade agostiniana, perfeitamente em harmonia com as experiências eremítico-contemplativa e apostólica, condensada no carisma da Ordem.